Iniciamos este debate partindo do pressuposto inegável da educação como um direito. Como podemos pensar em justiça social quando, ainda hoje no Brasil, quase 14 milhões de pessoas (IBGE, 2012) não tiveram acesso à educação escolar elementar?
A história da educação brasileira mostra que, durante um longo período, só as elites frequentavam as escolas públicas. Pelas condições sociais, a maioria da população estava excluída, pois muitos precisavam trabalhar desde cedo e, quando tinham acesso, eram expulsos da escola que não estava preparada para recebê-los – ou seja: havia uma inadequação da própria escola em lidar com a população mais pobre. Fatores como esses, de maneira velada ou explícita, fecharam as portas da escola, humilhando aqueles que a ela chegavam com o estranhamento próprio de uma classe social trabalhadora, com pouco ou nenhum contato com o mundo da leitura e da escrita.
De acordo com a publicação Educação de Jovens e Adultos: proposta curricular para o 1º segmento do Ensino Fundamental, organizada por Vera Maria Masagão Ribeiro (1997), até o início da década de 1950 o analfabetismo era concebido como causa e não como efeito da situação econômica, social e cultural do País. Essa concepção legitimava a visão do adulto analfabeto como incapaz e marginal. Segundo Carlos Rodrigues Brandão, o movimento de luta pela democratização da escola pública se articula para exigir o direito ao acesso à educação de todos os cidadãos, fundamentado em dois princípios:
[…] o primeiro considerava que a educação escolar era não só um direito de todos os cidadãos, mas o meio imediato, justo e realizável de construção das bases de uma sociedade democrática. O segundo, modificações fundamentais nas formas e na qualidade da participação de inúmeros brasileiros, tanto na cultura, quanto na vida econômica e política do país, eram uma condição fundamental para a melhoria dos indicadores de nossa situação de atraso e pobreza; a educação estendida a todos através de uma mesma escola – pública, laica e gratuita – é um instrumento indispensável em tudo isto. (BRANDÃO, 2006, p. 39).
A defesa de uma educação pública, democrática e popular para todas as pessoas faz parte da luta do movimento social brasileiro desde os anos de 1960. A luta por uma escola popular, democrática e cidadã prima pela qualidade do ensino e da aprendizagem. Não apenas pelo aumento dos anos de escolaridade, que, dependendo do caso, não significará proficiência na língua materna, nem capacidade de raciocínio lógico matemático, tampouco a capacidade de formar pessoas politizadas que possam, juntas, se mobilizar por uma causa como o direito à educação pública de qualidade, para si e para seus filhos, evitando que a história se repita. Sabemos que pais alfabetizados contribuem para o bom desempenho escolar dos filhos, entre outras coisas tão importantes quanto a diminuição das doenças e da mortalidade infantil. A escolaridade, com base nos princípios da democracia, da ética e na participação política, fomenta a luta por melhores condições de vida, incluindo reivindicações relativas à saúde, moradia, emprego, alimentação, transporte, lazer, entre outros.
Centrando-se a educação popular na produção cooperativa, na atividade sindical, na mobilização e na organização da comunidade para a assunção por ela da educação de seus filhos e filhas, através das escolas comunitárias [...] A que se junte a defesa da saúde, na alfabetização e na pós-alfabetização. (FREIRE, 2006, p. 132).
Se considerarmos que a educação emancipadora constrói sujeitos críticos, é preciso assegurar esse direito inalienável a todos e a todas. Seria muito ingênuo de nossa parte adotar o termo “educação” de forma genérica, sem nos posicionar a favor de quem, contra quem. Optamos pela educação que oprime ou pela que liberta?
Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê. Não posso ser professor a favor simplesmente do Homem ou da Humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. (FREIRE, 1997a, p. 115).
Portanto, anunciamos nosso posicionamento político diante da opção de uma concepção de educação cidadã, democrática e popular. Paulo Freire, em entrevista a Rosa Maria Torres em 1987, expõe sua visão, superando a confusão frequente que trata Educação Popular como sinônimo de Educação de Jovens e Adultos. “A educação popular se delineia como um esforço no sentido da mobilização e da organização das classes populares com vista à criação de um poder popular”, afirmou o educador. Portanto, necessariamente, não está diretamente ligada à EJA. A Educação Popular não depende da idade do educando e Paulo Freire prossegue, dizendo: “o que marca, o que define a educação popular, não é a idade dos educandos, mas a opção política, a prática politica entendida e assumida na prática educativa” (TORRES, 1987, p. 86-87).
A Educação Popular nasce na América Latina no século 19. Em 1849, o general Domingo Faustino Sarmiento, presidente da Argentina, que também era educador, escreveu uma obra intitulada De La Educación Popular. Ele a entendia como educação escolar primária e para todos, visando à formação do cidadão liberal. Assim, a Educação Popular nasce dentro do Estado como uma educação que “forma o povo”, que o educa para a sociedade liberal burguesa. Esta educação deveria ser ministrada pela escola pública primária, correspondente hoje ao Ciclo I do Ensino Fundamental.
No entanto, no século 20, o movimento social sindical operário concebe a Educação Popular como educação voltada para os interesses do povo, não como voltada aos interesses do Estado burguês. Por isso, defende que não deveria ser estatal, concebendo-a como uma forma de educação não oficial. Esta concepção da Educação Popular teve diferentes origens: o anarco-sindicalismo do início do século passado, o socialismo autogestionário, o liberalismo radical europeu, as utopias da independência que vinham desde o século 19 e chegaram ao nacional desenvolvimentismo do século 20 e as teorias da libertação que influenciaram também a teologia, além dos movimentos populares dos quais Paulo Freire foi tributário.
A América Latina tem sua história marcada por regimes autoritários, com longa experiência em ditaduras que tentaram impor uma “identidade nacional”, sem levar em conta o saber popular, a forma de ver o mundo das pessoas e de seus grupos. Portanto, a Educação Popular surge da luta pela liberdade, pela autonomia, pelo desenvolvimento autossustentado que valoriza a participação cidadã e sua emancipação histórica, contra autoritarismos e regimes de exceção. Assim, podemos dizer que, embora a Educação Popular e a Educação de Jovens e Adultos possuam uma estreita relação, “elas não são a mesma coisa. A Educação de Adultos pode ser popular ou não [...]. A educação popular, enquanto concepção de educação, pode estar presente em qualquer idade, nível ou modalidade de ensino” (GADOTTI, 2008b, p. 35).
Para Carlos Rodrigues Brandão (2006), a primeira experiência de educação com as classes populares, à que se deu, sucessivamente, o nome de educação de base como concepção de educação libertadora e mais tarde de Educação Popular, separada do Estado, surge no Brasil no começo da década de 1960. A Educação Popular surge como contraponto à ideologia dominante, dentro dos movimentos de cultura popular. Processualmente, dissemina-se por alguns governos de características mais populares, obtendo relevância pelo fato de respeitar a cultura do povo, por propor a educação como ato político e, portanto, transformador.
Dentre os muitos intelectuais que fazem jus a esta concepção, destacamos Paulo Freire como referência no Brasil, na América Latina e no mundo, pela sua contribuição original, contrapondo a educação tradicional bancária e autoritária à concepção popular de educação, bem como pela sua prática, como na conhecida experiência vivida em Angicos (RN). Em Angicos, a palavra “conscientização” foi traduzida nos relatórios de avaliação dos alfabetizandos como sinônimo de “politização”. Alfabetizar não era meramente decifrar códigos, era preciso “conscientizar”.
No final da década de 50, as críticas à Campanha de Educação de Adultos dirigiam-se tanto às suas deficiências administrativas e financeiras quanto à sua orientação pedagógica. Denunciava-se o caráter superficial do aprendizado que se efetivava no curto período da alfabetização, a inadequação do método para a população adulta e para as diferentes regiões do país. Todas essas críticas convergiram para uma nova visão sobre o problema do analfabetismo e para a consolidação de um novo paradigma pedagógico para a educação de adultos, cuja referência principal foi o educador pernambucano Paulo Freire. (RIBEIRO, 1997, p. 22).
Para Paulo Freire, a conscientização precede a alfabetização. Como afirma Celso de Rui Beisiegel, professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Paulo Freire,
[...] no primeiro artigo que escreveu sobre conscientização e alfabetização, publicado em 1963, na Revista Estudos Universitários da Universidade do Recife, dizia que o homem, primeiramente, se conscientiza para depois se alfabetizar, quer dizer, o problema da alfabetização é importante, mas ela é uma variável dependente; o essencial é conscientizar o homem, aquilo que os meninos da JUC (Juventude Universitária Católica), logo depois, em Angicos, no mesmo ano, numa experiência coordenada pelo próprio Paulo Freire, viriam a chamar de politização, quer dizer, primeiro, é envolver o homem oprimido, o homem massacrado pelas determinações da sua vida, num processo de conscientização, de tomada de consciência que lhe possibilite se organizar e lutar pela transformação de uma sociedade que o oprime, quer dizer, os movimentos de educação de jovens e adultos da década de sessenta eram movimentos de transformação da sociedade. (apud INSTITUTO PAULO FREIRE, 2005, p. 36).
O pensamento pedagógico de Paulo Freire e a sua proposta de alfabetização de adultos inspiraram os principais programas de alfabetização e Educação Popular que se realizaram no País no início dos anos de 1960 por intelectuais, estudantes e católicos, engajados numa ação política junto aos grupos populares. Atuaram os educadores do Movimento de Educação de Base (MEB), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dos Centros de Cultura Popular (CPCs), organizados pela União Nacional dos Estudantes (UNE), dos Movimentos de Cultura Popular, que reuniam artistas e intelectuais com apoio de administrações municipais. A articulação destes diversos grupos de educadores passou a pressionar o governo federal para que os apoiasse e estabelecesse uma coordenação nacional das iniciativas.
Em janeiro de 1964, foi aprovado o Programa Nacional de Alfabetização, que previa a disseminação de programas de alfabetização orientados pela proposta de Paulo Freire por todo o Brasil.
O paradigma pedagógico que se construiu nessas práticas baseava-se num novo entendimento da relação entre a problemática educacional e a problemática social. Antes apontado como causa da pobreza e da marginalização, o analfabetismo passou a ser interpretado como efeito da situação de pobreza gerada por uma estrutura social não igualitária. Era preciso, portanto, que o processo educativo interferisse na estrutura social que produzia o analfabetismo. A alfabetização e a educação de base de adultos deveriam partir sempre de um exame crítico da realidade existencial dos educandos, da identificação das origens de seus problemas e das possibilidades de superá-los. Além dessa dimensão social e política, os ideais pedagógicos que se difundiam tinham um forte componente ético, implicando um profundo comprometimento do educador com os educandos. (RIBEIRO, 1997, p. 23).
Esse engajamento revolucionário de Paulo Freire, de estudantes e sindicatos, estimulados pela efervescência política da época, chamou a atenção das elites, pois a educação como ato político poderia, em curto prazo, desvelar a realidade opressora e provocar mudanças no País. A preparação do plano foi interrompida alguns meses depois pelo golpe civil militar. Paulo Freire foi exilado e os programas de alfabetização e Educação Popular, que haviam se multiplicado no período de 1961 a 1964, foram vistos como grave ameaça à ordem. O governo só permitiu a realização de programas de alfabetização de adultos assistencialistas e conservadores, até que, em 1967, ele mesmo assumiu o controle dessa atividade lançando o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), enterrando de vez o sonho do Programa Nacional de Alfabetização de Paulo Freire.
Em 1969, o Mobral lançou uma campanha massiva de alfabetização que reproduzia alguns procedimentos adotados por Paulo Freire. No entanto, o conteúdo era esvaziado de sentido crítico e problematizador. Ainda com esta característica, o Mobral se expandiu pelo País durante a década de 1970, sendo extinto em 1985, depois de cair no descrédito dos meios políticos e educacionais.
No final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, a Educação Popular, como todo processo histórico, passava por uma refundação. Com a redemocratização da América Latina, emergiram experiências de Educação Popular em muitos setores, como: saúde, trabalho, assistência social, terra, moradia, gênero, religião etc. Assim, no Brasil, muitos projetos foram retomados, inclusive o de erradicar o analfabetismo. Novos temas foram incorporados: o diálogo de saberes, os conceitos de sociedade civil, gênero, questão ambiental, a valorização da subjetividade etc., distanciando-se de uma leitura classista e reprodutivista da educação. A escola pública passou a ser assunto da Educação Popular. A Educação Popular começa a ser entendida como política pública.